terça-feira, 16 de junho de 2015

Piano in the park

Carreta/palco do Museu Itinerante do Piano, em Brasília

Um piano ressoando no ermo do Planalto Central. Parece aqueles vídeos espetaculares dos caras do Piano Guys, um piano em pleno cânion americano, mas não. É um piano no fim de tarde no Parque da Cidade de Brasília, mais precisamente a programação musical do Museu Itinerante do Piano. Estamos em junho e já é quase inverno seco nessas bandas do Brasil.

Vamos por partes. Uma carreta tipo baú, de 19 metros de comprimento, três eixos de rodas na carroceria. A carreta, na verdade, é o Museu Itinerante do Piano. Isso, um museu sobre rodas. Dentro, cerca de 15 exemplares de píanos, máquinas das mais diferentes formas, tamanhos e épocas, incluindo réplicas, como a de um Doublepiano, um piano dois em um, isto é, um piano com dois teclados dispostos em lados opostos, permitindo o uso por um, dois, três, quatro executantes (ou mais, sabe-se lá a partitura e a criatividade).

Réplica do Doublepiano e seu construtor, o técnico-afinador de pianos Rogério Resende
Um minuto para insistir no Doublepiano. Trata-se de réplica do Pleyel Doublepiano, fabricado por Gustave Lion, na França, cerca de 1890. Um piano construído a partir de uma imagem, uma fotografia da época. O autor da façanha, o técnico-afinador de pianos Rogério Resende. Passemos aqui um marca-texto no nome de Rogério Resende, o criador e curador do Museu Itinerante do Piano, pois, apesar não podermos dissociar uma coisa da outra, é preciso um capítulo inteiro só para dele.

Um piano para o pianista e seu melhor amigo
Continuando no Museu Itinerante do Piano, temos ainda outra simpática réplica, a de um piano vertical, o qual, na altura dos pedais, encontra-se uma portinhola, e dentro dela um cãozinho (de pelúcia, é claro). Entenderam? Um piano com uma casinha de cachorro. O projeto é suíço, de 1831, mais uma informação que denota o cuidado do Museu Itinerante do Piano e seu criador com esta fina arte, a de martelar cordas, em tons piano, evidente.

Rogério Resende e o piano da professora Neusa França
Mais adiante temos o Zeitter & Winkelmann, vertical, de 1925, fabricado pelo alemão Eduard Seiller. Aos moradores de Brasília, um aviso: trata-se de relíquia que prestou longos serviços à sua proprietária, a pianista e professora Neusa França, cujo nome encontra-se gravado na epopéia da cidade. Ficamos sabendo que ela doou o instrumento ao Museu Itinerante do Piano. Nas mãos de Rogério Resende virou uma jóia restaurada, verdadeira flor rara do Cerrado.

O Museu Itinerante do Piano guarda muitas outras surpresas ao visitante. Cada exemplar, finamente cuidado, revela o amor intenso por essa profissão, muito incomum em nossos dias, a de técnico-afinador de pianos. O que estamos vendo, os lindos pianos, nos causa impacto, pois a vontade inerente de quem observa um instrumento musical é vê-lo (ou senti-lo) tocando, isto é, produzindo música. Calado, o piano, magnífico, só está esperando que alguém que lhe revele a alma. Como toda máquina, precisa dos cuidados certos e de mãos habilidosas e sensíveis que lhe saibam extrair os mais belos sons.

Professor Joel Bello Soares, um gigante entre nós
Voltemos ao tal piano ressoando no ermo. Chega a noite e, no palco acoplado à carreta, o professor Joel Bello Soares surge feito gigante junto ao Yamaha meia cauda. Um breve aplauso do modesto público e em seguida a “Balada N° 1 em Sol Menor”, de Chopin, será o som onipresente. Aliás, uma mesa de som muito bem azeitada nos permite perceber graves e agudos e chegar à conclusão: esse piano tem dignidade.

O set do professor Joel Bello Soares, 80 anos, termina com a “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro”, de L.M. Gottschalk. Uma peça, por si só, de grande interesse, afinal, é o Hino Nacional Brasileiro e nesses dias em que esse escrito é forjado ainda se presta reverência a esse símbolo nacional. Aliás, pensando bem, interessante notar que o hino (música e letra) é um bem imaterial que os povos fazem questão de manter e bem cuidar.

Trio Alguidá: John Coltrane sem sax
Antes que a descrição vire ata protocolar, basta dizer que o Alguidá Trio (ou Trio Alguidá), a atração programada a seguir, na programação musical do Museu Itinerante do Piano (ao ar livre, no Parque da Cidade de Brasília), cometeu a ousadia de tocar “Naima”, de John Coltrane, sem o sax característico dessa peça jazzística. O trio instrumental formado por Tekokatu Enitan (piano/vocais), Ronaldo Gaffa (bateria) e Artur Souza (baixo elétrico) é prova de que o jazz e suas deambulações sonoras é música no contexto do improviso e da provocação do ouvinte. Por isso é jazz. Esses meninos são bons pra caramba.

Fechando a noite, quando Vênus e Júpiter brilham fulgurantes no céu sem nuvens de Brasília, um grupo, misto de saltimbancos, gurus de túnica indiana, e músicos clássicos toma lugar e, de repente, estamos diante de algo diferente nessas paragens.

Como Nasceram as Estrelas: Clarice Lispector com sotaque português
Abram alas que o Toy Ensemble, de Portugal, começa o espetáculo “Tocado, Falado & Riscado”. Este é o epíteto da estranha e agradável mistura de música, literatura e artes gráficas, com o característico sotaque português. O mais inusitado: trata-se da musicalização da obra “Como Nasceram as Estrelas”, de Clarice Lispector.

Aqui temos a mais brasileira das ucranianas investigando doze lendas do folclore nacional. Curumins transformados em estrelas, bichos em alvoroço, o Uirapuru (o pássaro da sorte), Pedro Malazarte, o Curupira, o Saci-Pererê, enfim, para cada mês Clarice dedicou uma estória. E não é que em Portugal isso virou música para ver e ouvir?

Toy Ensemble e o compositor Fernando Lapa (segundo à esquerda)

Sob a narração do ator António Durães, os músicos Jed Barahal (violoncelo), Christina Margotto (piano), Marco Pereira (flauta), Ricardo Alves (clarinete), David Lloyd (violino) e Paulo Costa (percussão), o Toy Ensemble, executam com maestria a música composta por Fernando Lapa. O som é camerístico, com espaços para os instrumentos ora aparecerem, ora soarem em uníssono.

No dia seguinte (foram dois dias de programação musical, acompanhando os dois dias de visitação pública no Museu Itinerante do Piano), um problema, se é que se pode chamar de problema. Tarde quente e o parque de súbito será tomado por programação musical, digamos, concorrente.

O Museu Itinerante do Piano e sua música para piano terá que antecipar tudo, pois conhecida cantora baiana (muito bonita, muito talentosa e muito simpática, por sinal) vai cantar de graça junto a um jovem talento do rap, um dueto que roda o país levando ao público a música de Tim Maia. Ficamos sabendo depois que o tal show, patrocinado por marca de cosméticos, levou 50 mil pessoas a uma das áreas do Parque da Cidade Brasília “Dona Sarah Kubitschek”.

O Museu Itinerante do Piano não tem a menor chance de atrair público. Rápido, Rogério Resende e equipe antecipam a programação, fazendo com que a música comece antes de a baiana rodar seu charme. Interessante notar que a belíssima programação musical escolhida por Rogério Resende súbito concorre com música, digamos, de maior apelo popular. Só lembrando que antes do tal tributo a Tim Maia, o reggae ecoa forte em área adjacente. O público, majoritariamente jovem, talvez não esteja interessado em solos de piano. Isso é música muito circunspecta, para ouvir sentado, afinal.

Assim, temos sob alta temperatura e secura proeminente o pianista local Pablo Marquine, que nos deixa flutuando ao som de sonatas compostas pelo amazonense/brasiliense Claudio Santoro (1919-1989). O maestro, que dá nome ao Teatro Nacional de Brasília, foi o fundador de sua orquestra. Suas obras para piano vêm sendo redescobertas, corrigidas e ainda estão por serem executadas em sua íntegra. Pablo Marquine, um estudioso da obra de Santoro, nos revela apenas um pouco do que está por vir.

Christina Margotto ao piano, Jed Barahal (atrás) no violoncelo
Ainda sob forte calor seco, dois músicos do português Toy Ensemble, a pianista brasileira, radicada em terras lusitanas, Christina Margotto, e o violoncelista norte-americano Jed Barahal nos brindam com uma hipnótica “Modinha”, de Francisco Mignone (1897-1986). Daí em diante, peças para piano e cello revelam que o rei dos instrumentos é soberano em duos.

Renato Vasconcellos, Leander Motta e Osvaldo Amorim: monstros
Para terminar, o trio de Renato Vasconcellos. Compositor, arranjador e pianista de notável senso jazzístico, Renato tem vasto currículo como acompanhante de artistas consagrados da Música Popular Brasileira. Aqui, acompanhado do percussionista Leander Motta e do baixista Osvaldo Amorim, temos o jazz instrumental domando a tarde. Aliás, os três são, com o perdão do clichê, monstros sagrados da música feita em Brasília. Os três músicos, donos de currículos invejáveis, mostram um entrosamento em que os sons de seus instrumentos dialogam e tecem trama musical cheia de “groove”. Um som irresistível. Os amantes da música aplaudem de pé. This is jazz, man. Bring your ears, come in peace and enjoy this.
Um piano ao cair da tarde

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